domingo, 14 de abril de 2013

Divagações na Floresta


Aqui também é domingo. Chove. As galinhas ciscam, nervosas, embaixo da casa, e uma luz lavada se esparrama pela paisagem. Dora não pode terminar de tingir as kusmas e se dedica à costura. O trabalho segue bem. Começamos uma oficina de tradução em cima do texto do livro. A gramática Ashaninka é muito interessante, os verbos vem primeiro nas frases, depois seguem o sujeito, os objetos e adjetivos. A força de separar os períodos e devido a algumas repetições começo a intuir, vagamente, algo da língua.


Tayri abraçou a pintura e vem mesmo durante o final de semana produzir um pouco. Mas hoje os papéis estão moles, as tintas não secam e as cores se misturam a revelia da nossa vontade. O dia está molhado, assim como a nossa vontade. A lama domina o campo de futebol que ficou esquecido, entregue as poças e aos calangos que passam, apressados, a procura de abrigos melhores.

Alguns estão preocupados com a tensão bélica na Coreia, Moisés se inqueita com a rota dos traficantes, Dona Piti maldiz os caçadores que mataram quatro antas dentro do terrítório e passaram rio abaixo com mais de cem quilos de carne. Benki veio para a aldeia tentar reunir um grupo para fazer pressão política em prol de seu projeto de gestão ambiental para o Município de Marechal Taumaturgo numa reunião com o governo em Cruzeiro do Sul.


Atrávez deles seguimos conectados com o mundo, intelectual e espiritualmente, por uma perpectiva e um sentimento próprio de pertencimento e autênticidade. Com suas questões políticas, ambientais e humanas, suas próprias urgências e perigos. Ter o privilégio de estar aqui, de ver e viver tudo isso, nos torna, automaticamente, aliados dessa gente em seu caminho. Faz com que sejamos um pouquinho, e humildemente, porta-vozes da sua sabedoria e sensibilidade por outros caminhos pelo mundo afora.


 É domingo. Mercedes Soza canta "Gracias à la Vida" no MacBook em que o macaco tenta aprender a digitar.

Fotos de Amanda de Stéfani


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Família Ashaninka


Nossos melhores amigos na aldeia são, naturalmente, os nossos vizinhos. Nossas casas são voltadas uma para a outra e o tempo todo observamos, discretamente, o movimento de lá enquanto eles, por sua vez, espiam nossas atividades aqui.

Dora, nossa vizinha de frente, zela por nós discretamente e, a cada dois dias, nos manda por Erychi, sua filha mais velha, uma cacho de bananas, algumas laranjas. Nós retribuímos como podemos com um pouco de sabão e muitos sorrisos, já que nossos víveres são escasos. Ontem a ajudamos a colher e a limpar as sementes que servem de enfeite para as cusmas (suas roupas tradicionais).

Hoje foi um dia especial: ganhamos uma panela de caldo de açaí preparado por Tayri, o mais velho dos meninos, e um pedaço de carne paca fresquíssima! Os meninos são educados, inteligentes e alegres e já prevejo a falta que vou sentir deles.


De vez em quando atravessam o terreiro e vem até a nossa casa escutar um pouco de música, desenhar conosco ou, simplesmente, nos fazer uma visita. Agora de noite, enquanto eles jantam em familia e eu escrevo sobre eles, ouço Bianca, a caçula, contar perplexa para sua mãe que nós comemos o açaí com banana e demos ao macaco um nome bizarro! Eles são um espelho da nossa própria surpresa e curiosidade.

Boa noite Dora, Erychi, Tayri, Pianko, Bianca, que estão se tornando um pouco nossa família Ashaninka.

Fotos de Amanda de Stéfani


terça-feira, 2 de abril de 2013

Fauna Cotidiana

Nossa casa tem toda uma fauna própria. A começar por Gigio, o macaco, que vem nos visitar todos os dias. Ele dorme nas árvores, mas logo que o dia amanhece, vem sacudir os mosquiteiros das nossas redes. É uma peste! Já nos roubou mais de três bananas e um punhado de uvas passas, adora escalar cabeças, mas ninguém consegue zangar-se seriamente com ele.


Também tem Silvia, uma cobra verde, que mora no nosso telhado, mas, apesar do susto que levei outro dia quando ela quase caiu na minha cabeça, os índios disseram que ela não é perigosa e a chamam de "cobra enxerida". Erish até gosta de usá-la como colar!

De dia, é impossivel evitar que as galinhas visitem a nossa cozinha, de noite os ratos e, a qualquer hora, as baratas, as formigas, as aranhas, e, onde quer que vamos, os piúns (mosquitos) que, nessa época de chuvas, são de enlouquecer até os índios.



Como esquecer dos macheros, sapos gordos que povoam o terreiro e que as crianças, cruelmente, gostam de usar como bola. Nas duas últimas noites, têm nos visitado um morcego que entra e sai ao seu bel prazer já que não temos paredes, apenas telhado e, neste momento que vos escrevo (é madrugada) cruzou por aqui um quati, muito ligeiro, de olhos amarelos faiscando na escuridão.


 
Estranhamente, sentimos uma espécie de comunhão com todas essas criaturas que, ao invés de nos ameaçar, parecem partilhar conosco o desafio de viver. Ok, tiremos dessa conta as baratas - e os mosquitos! Mas, seguindo o conselho de Benki, devemos ser amigos dos piúns pois só assim eles serão nossos amigos. Estamos tentando...



Fotos de Amanda de Stéfani

A Vida na Aldeia


Os Ashaninka daqui vivem na pontinha do Brasil, quase na fronteira com o Peru, bem no meio da floresta amazônica, às margens do rio Amônia, numa aldeia chamada Apiwtxa. Uma aldeia muito bonita, diga-se de passagem, com casas suspensas espalhadas pelas duas margens do rio. Eles fazem a travessia de canoa e, de manhã, uma névoa cobre tudo de branco. Temos a impressão de estar em um outro mundo, em um outro tempo, ou dentro de um sonho.

Aos poucos o sol vai dissipando a bruma e os risos das crianças e o cocoricó das galinhas enchem o ar. O movimento na aldeia começa. Homens e mulheres passam para lá e para cá munidos de facões e cestas, vão tirar mandioca no roçado, lavar roupa no rio, pescar, arrumar uma casa.


Os Ashaninka são altivos, orgulhosos, mas cordiais. Alguns inspiram realmente uma realeza (usando termos bem ocidentais): são como principes da floresta. É bonito de ver. Nossa presença passa quase invisível em meio as atividades do dia, com breves acenos de cabeça ou sorrisos fulgazes. De noite, um som de tambor ao longe, a imagem de um ritual silencioso sob o céu, um véu de estrelas e a sensação do quão diverso e vasto é o mundo.

Fotos de Amanda de Stéfani